Sonhos
domingo, 17 de maio – 2 meses de quarentena
durante a pandemia do covid-19, que estamos todxs atravessando, a única coisa que me propus a fazer, de forma mais ou menos sistemática, foi anotar meus sonhos e, ainda assim, tiveram vários que escaparam. quando eu digo sistemática, infelizmente, não quer dizer menos caótica, porque, quando eu menos espero, tem pedaço de sonho registrado no gravador do celular, nas mensagens do zap, do instagram, no caderno, no arquivo do computador, no e-mail… tem pedaço de sonho em vários lugares diferentes e eu tenho que fazer um esforço de formiga pra coletar/reunir minha própria dispersão. tem sido muito difícil pra mim, neste período, tentar ter/manter qualquer tipo de metodologia mais estrita. imagino que pra vocês também.
dentre algumas ideias que tive pra trazer pra cá, pensando em como contribuir com esta publicação, a maioria delas com coisas que tô fazendo em conjunto com outras pessoas, a única que realmente persistiu foi a dos sonhos. mas porque eu decidi me mudar no final de abril/começo de maio, foi ficando cada vez mais difícil pra mim tentar coincidir o meu tempo com o tempo dos outros, por isso acabei decidindo mandar apenas meus sonhos mesmo, sem muitas adjacências. de qualquer forma, sonhar sempre abre pra uma geografia múltipla, e as vozes dos outros acabam aparecendo.
dos sonhos que tive, selecionei alguns pra cá relacionados, de um modo muito aberto, ao corpo, não só nosso corpo fisiológico, mas um corpo de linguagem também, e outros tipos de corpos… antes da pandemia, tava lendo o livro da charlotte berardt, sonhos no terceiro reich (trad. silvia bittencourt) e, durante a pandemia, comecei a ler o do carlos castañeda, l’art de rêver (trad. marcel c. kahn). recentemente descobri o trabalho do neurocientista e pesquisador sidarta ribeiro, o oráculo da noite – a história e a ciência do sonho, mas ainda não comecei a ler. talvez esses livros sejam legais pra quem, assim como eu, tenha algum interesse nos sonhos. também decidi rever aquele filme, waking life, que vi há muitos anos, e não apenas revi esse, como assisti a outro filme do mesmo diretor, richard linklater, no mesmo estilo, a scanner darkly (o homem duplo), baseado numa novela do philip k. dick, dica de um amigo australiano.
de sábado (16/05) pra domingo (17/05)
sonhei que ia encontrar aquela poeta das conversas feministas, as vírgulas, aquela que também é atriz e que escreveu um poema que eu amo, “vulva termostática”, em que ela compara a vulva a uma válvula – é um poema sobre masturbação.
assim que eu me mudei, tive um problema com a válvula do gás, ela começou a apitar do nada, como se fosse um apito de um navio… na hora, eu fiquei muito assustada, nunca tinha visto uma válvula apitando daquele jeito, eu achava que o gás ia explodir e tratei logo de desligar o forno, que eu tava inaugurando naquela noite. era a minha primeira noite na casa nova. no dia seguinte, menos assustada, fui pesquisar na internet e descobri que as válvulas de gás têm validade de 5 anos e que, quando elas tão perto de vencer, elas apitam. era um sinal. exatamente como um canário no interior de uma mina. chamei o rapaz que trabalha aqui no condomínio e trocamos a válvula.
no sonho, eu e a nádia, a gente se encontrava e conversava sobre várias coisas, mas não conversava sobre válvulas, conversava sobre masturbação. eu falava pra ela que tava muito apaixonada por uma pessoa que reapareceu durante a quarentena e que eu tava me masturbando muito, pensando nela. daí a nádia retrucou e disse: você não tá apaixonada por essa pessoa, na verdade, você tá apaixonada pela sua vagina. ela me dizia pra eu não me sentir culpada e me entregar pra essa nova paixão, com gosto de gás… na hora, fiquei um pouco confusa e começou a pipocar ao redor da minha cabeça, como janelas pop-up, os nudes que a gente tava trocando entre a gente, como se fossem hologramas de uma animação 3D caseira, uma série de paus e bucetas girando ao redor da minha cabeça… daí eu lembro que respirei fundo e eles começaram a desaparecer um a um, seguidos de uma onomatopeia, PLOFT, e eu me perguntava: será que eu tô mesmo apaixonada pela minha buceta e ele pelo seu pau? acordei achando que precisava transar com alguém de verdade, com um pau de verdade, que esse negócio de nudes já deu. já tinha dado. adeus. fiz meu último nudes dessa quarentena hoje, um nudes capilar, e assim me despedi do mundo da fantasia dos nudes encantados. acabou a graça.
de tarde, um pouco mais resignada, depois de gravar um teste que tenho certeza não vai ser selecionado prum curta metragem de ficção-científica câmbiooo, parti pra minha sala determinada a encontrar aquele livro do bolaño de sonhos que eu tava procurando desde o começo dessa quarentena e que eu ainda não encontrei. dessa vez, seria diferente. eu tava sentido. e como se fosse por um passe de mágica ou, talvez, simplesmente uma singela confirmação dos anjos que me acompanharam nessa jornada de buscas e frustrações ao longo desses dois meses de quarentena, por saberem que nos próximos dois meses eu também não vou transar com ninguém mesmo, achei o livro e abri exatamente na parte que tava procurando: “un paseo por la literatura”.
até me arrepiei.
dois meses de tentativas desencontradas, pra, de repente, dar de cara com a passagem que eu precisava pra reanimar o resto do meu domingo perdido… como agradecimento aos anjos que me ajudaram nessa difícil empreitada, decidi copiar alguns sonhos e partilhá-los com vocês, como recompensa por terem chegado até aqui, junto comigo, exatamente como eu, sem sexo. e o que é ainda mais aterrorizante, sem a perspectiva de, num futuro distópico qualquer, conseguirmos transar novamente logo. então, leiamos e regozijemos, irmãos, desfrutemos do que ainda temos à nossa mão:
- Soñé que Georges Perec tenía tres años y visitaba mi casa. Lo abrazaba, lo besaba, le decía que era un niño precioso.
- Soñé que Macedonio Fernández aparecía en el cielo de Nueva York en forma de nube: una nube sin nariz ni orejas, pero com ojos y boca.
- Soñé que encontraba Gabriela Mistral en una aldea africana. Había adelgazado un poco y adquirido la costumbre de dormir sentada en el suelo con la cabeza sobre las rodillas. Hasta los mosquitos parecían conocerla.
- Soñé que traducía a Virgilio con una piedra. Yo estaba desnudo sobre una losa de basalto y el sol, como decían los pilotos de casa, flotaba peligrosamente a las 3.
- Soñé que Arquíloco atravesaba un desierto de huesos humanos. Se daba ánimos a sí mismo: «Vamos, Arquíloco, no desfallezcas, adelante, adelante.»
- Soñé que tenía quince años y que iba a la casa de Nicanor Parra a despedirme. Lo encontraba de pie, apoyado em una pared negra. ¿Adónde vas, Bolaño?, decía. Lejos del Hemisferio Sur, le contestaba.
- Soñé que Anacreonte contruía su castillo en la cima de una colina pelada y luego lo destruía.
- Soñé que me enamoraba de Alice Sheldon. Ella no me quería. Así que intentaba hacerme matar en tres continentes. Pasaban los años. Por fin, cuando ya era muy viejo, ella aparecía por el outro extremo del Paseo Marítimo de Nueva York y mediante señas (como las que hacían en los portaaviones para que los pilotos aterrizaran) me decía que siempre me había querido.
- Soñé que hacía un 69 con Anaïs Nin sobre una enorme losa de basalto.
- Soñé que follaba com Carson McCullers en una habitación en penumbras em la primavera de 1981. Y los dos nos sentíamos irracionalmente felices.
- Soñé que traducía al Marques de Sade a golpes de hacha. Me había vuelto loco y vivía en un bosque.
de quarta (13/05) pra quinta (14/05)
sonhei que saía de casa de peitos de fora. eles já apareceram aqui antes, mas em outro contexto. nesse sonho de ontem, não tinha blusa que cobrisse meus peitos, mas tinha máscara pra cobrir meu rosto. todo mundo ao nosso redor contaminado e eu saía de casa de peito de fora, de peito aberto pro mundo. daí eu chegava na casa da minha mãe, pra entregar umas coisas pra ela, eu tava bem agitada, física e mentalmente agitada, mas ela tava super de boas, tranquilona, fazendo um coquetel: máscaras junto com água sanitária, com um pouco de água quente, mel, gengibre e limão, um pouco de cúrcuma, maçã, couve e cenoura, ela disse que era batata, tudo junto batido no liquidificador, vírus nenhum se aproximava… daí ela parava e olhava pra mim assim, e dizia que eu ia ficar gripada, com essa chuva lá fora, era melhor eu por uma capa. eu achava aquele coquetel que ela tava fazendo completamente absurdo, daí eu saía de lá resmungando e apertava no botão do elevador pra ir embora.
esse sonho talvez tenha a ver com essa passagem do livro da patti smith que li essa semana, só garotos (trad. alexandre barbosa de souza):
“Patrícia”, ralhou minha mãe, “veste uma camisa!”
“Está muito quente”, reclamei. “Ninguém está de camisa.”
“Quente ou não, já está na hora de você começar a se cobrir. Você está virando uma mocinha.” Protestei com veemência e anunciei que eu nunca viraria outra pessoa senão eu mesma, que eu era do clã do Peter Pan e a gente não crescia.
de terça (12/05) pra quarta (13/05)
antes de dormir, eu e myzael combinamos de ficar lendo, ficar trocando áudios no zap de poemas eróticos daquela antologia organizada e traduzida por josé paulo paes. eu escolhi ler pra ele um poema do marot:
À BELA TETA
Teta mais branca do que um ovo,
Teta de cetim branco e novo,
Teta que faz inveja à rosa
E mais do que tudo é formosa,
Teta dura, nem teta, sim
Pequena bola de marfim,
Bem no meio da qual aflora,
Rubra, uma cereja ou amora,
Que, aposto com vossa mercê,
Ninguém apalpa, ninguém vê.
Teta de bico cor de sangue,
Teta que nada tem de langue
E, indo ou voltando, não balança,
Quer em corrida, quer em dança.
Teta esquerda, pequenininha,
Sempre distante da vizinha,
Teta que dás fiel imagem
Do restante da personagem,
Quem te vê, que tentação
De te conter dentro da mão
E comprimir-te e apalpar-te;
Mas é melhor deixar-se de artes
E não o fazer, pois prevejo
Que lhe viria outro desejo!
Teu bom tamanho não engana,
Teta madura que dás ganas,
Teta que um só anelo expressa:
“Casai comigo bem depressa!”
Teta que incha e quer ir além
Do corpete que ora a detém.
Oh! felizardo quem te encher
De leite para te fazer,
De ti que és teta de donzela,
Teta de mulher plena e bela.
depois que eu li, ele falou alguma coisa sobre esse poema, ele gostou desse poema, meio que esse poema bateu. eu lembrei da marie carangi, minha amiga artista pernambucana, que tem todo um trabalho com suas tetas, além daquela camiseta maravilhosa, Buceta !, que eu adoro, até poema pra homenagear a camiseta dela eu já fiz… tal hora, depois de uma boa dose de poemas eróticos, fomos dormir.
sonhei com uma amiga minha que acabou de fazer uma cirurgia pra retirar um tumor da mama. ela aparecia no sonho muito bem humorada, depois de sair da sessão de químio. durante essa grande crise do covid-19, ela começou a fazer químio. quando ela chegou, eu tava falando com uma amiga trans, a isadora ravena, que tava muito empolgada, atrás da mesa, mostrando suas novas tetas. ela baixava a blusa e mostrava suas tetas novas, meio que oferecendo elas pra câmera. era como se eu tivesse entrevistando a isadora por causa do seu livro de poemas sinfonia para o fim do mundo. tal hora, minha amiga que saiu da químio tava cansada de ficar em pé assistindo e decidiu ir embora, eu lembro de olhar pras duas e pensar no silicone. daí olhei pra lua e a lua era uma grande teta prateada pingando leite igualmente prateado nas nossas cabeças. todo mundo nesse sonho ficava molhado, e, por extensão, abençoado.
de manhã, quando acordei, fiz uma postagem no instagram, marquei a tetinha e a isadora, não marquei minha outra amiga por questões de privacidade. de noite, fui prum aniversário virtual no zoom. nossa sra. de guadalupe tava comemorando 27 anos e lá eu encontrei a isadora. eu disse pra ela, mulhé, eu sonhei contigo e com tuas tetas. e ela me disse, mulhé, eu tô passada, hoje de manhã acordei dizendo pra todo mundo que ia colocar meus peitos. nunca falo sobre meus peitos. isadora ravena nasceu na mesma cidade onde minha mãe nasceu. uruburetama, só que muitos anos depois. não faço a menor ideia por que captei as ondas magnéticas das tetas de isadora. mas às vezes acontece. aconteceu.
a forma concisa desse sonho é:
sonhei com isadora ravena
no ritmo das tetas
misturava ela e minha querida
amiga que perdeu a teta
isadora ganhava
perder e ganhar
silicone
e também tinha a lua
em forma de teta
lua tetuda prateada
emanando leite prateado
sobre nossas cabecinhas
molhadas, abençoadas
cabecinhas consagradas
de domingo (10/05) pra segunda (11/05)
provavelmente foi por causa do poema dela que sonhei com ele. o poema se chama “impossible mirrors” e é dedicado a hortense, ele foi escrito por lotta thießen e publicado no seu último livro, fragments of baby. é um poema de amor, no sentido em que se propõe pensar a relação da lírica amorosa e a não-realização do ato sexual, ou seja, lírica sem coito, lírica da imaginação febril. lírica esplendorosa pra literatura, lírica com muito desejo de corpo, mas sem gozo carnal, realizado. esse poema é a prova cabal da imaginação como potência.
sonhei que ia até a casa dele e era uma continuação do sonho que tava sonhando antes. ele e o irmão dele tavam lá e ambos varriam a casa. eu não falei logo com ele, mas com seu irmão. o irmão dele era muito gentil comigo e eu me senti muito confortável lá. a certa altura, eu fui num quarto que tava fechado e vi seis berços vazios, como se fossem ninhos, em forma de catedrais góticas. eles eram levemente diferentes entre si. eles eram muito bonitos, mas tavam todos vazios. visitar esse quarto me deu a sensação de que eles cuidavam de bebês recém-nascidos, mas quando acordei, pensei em túmulos dum cemitério, apesar de terem, claramente, o formato de berços. depois de ter visitado esse quarto, fomos, eu e o irmão dele, pra cozinha e decidimos fazer pipoca pra comer na hora do almoço. estamos em quarentena, não tem problema comer pipoca no almoço. o irmão dele tava conversando comigo em alemão, era o alemão que ele tinha, um alemão muito particular… daí eu ficava o tempo todo dizendo, tentando entender: ah, é wie geht’s dir?, o que você quer dizer?; ah, é heute ist freitag?, e assim por diante… a única coisa que me parecia estranha, que eu não entendia direito, era por que ele tava tão distante, apenas varrendo a casa, e em nenhum momento veio me dizer olá.
de sexta (01/05) pra sábado (02/05)
hoje pensei que não tinha sonhado, mas me lembrei. entre às 6h e às 8h, quando voltei a dormir, sonhei com o myzael fazendo um diário da minha aparição lá na casa dele, como corpo astral, kâma rupa, corpo de desejos. depois ele escreveu mais alguma coisa no seu diário que eu não consegui ler. depois de lá eu visitava a casa do palhacildo, lá em farias brito. na casa do palhacildo, era completamente diferente, a gente só ficava jogando conversa fora, enquanto jogava sinuca na sala.
de quarta (28/04) pra quinta (29/04)
sonhei que meus braços eram feitos de um tipo de tecido muito fino e eu tinha braços muito longos e compridos que podiam me envolver por inteira, como aquelas roupas usadas pra manter pessoas loucas presas em hospitais psiquiátricos de antigamente. no meu caso, eu ia trocar de pele, como uma lagarta se transformando no seu próprio casulo, transformando-me numa cigarra. lembro que a sensação de estar envolvida em minha própria pele não foi muito boa, mas tudo bem. acho que esse era um sonho de amor.
de sexta (17/04) pra sábado (18/04)
sonhei com uma amiga minha, eu não lembro direito do sonho, mas ela ficava falando comigo umas coisas que tínhamos pra fazer, de um trabalho, e tinha uma palavra que ela falava, não sei se era mosquito, mas eu entendia periquito. essa situação, apesar de parecer extremamente angustiante, no sonho não era. nem eu nem ela percebíamos que havia esse “mal-entendido”. e de um jeito muito louco, muito orgânico, quando ela falava plebiscito, acho que era plebiscito, periquito fazia muito sentido. encaixava. achei curioso que esse tipo de mal-entendido linguístico pudesse estar acontecendo na minha própria língua. tô mais acostumada com isso acontecendo quando falo línguas estrangeiras, mas em português, não.
de terça (07/04) pra quarta (08/04)
não me lembro direito do sonho todo. ele era maior do que isto que ficou, mas algo ficou
hoje, quando eu acordei, lembrei que tinha a ver com paralisia, com estarmos paralisados. como se fôssemos modelos mortos-vivos do capitalismo tardio, como aqueles manequins na vitrine de qualquer loja de roupas, aqueles que vendem roupas parados, sem precisar se mexer, em posições muito estranhas
todos os cidadãos de todas as cidades do mundo todo tavam assim, paralisados, presos em posições muito estranhas, como se não houvesse mais nenhum paralelo possível entre o céu e a terra
só que aí é que começava nosso trabalho, da equipe de voluntariado salva-vidas: nós éramos tipo uns apicultores especiais, com muito mais estrogênio do que o normal, usando uns macacões amarelos e ungidos de um largo estoque de abelhas silvestres e pomadas de geleia real
daí a gente ia lá, nas pessoas paralisadas, e começava a tirar elas da paralisia, picando elas com o ferrão das abelhas bem no umbigo, isso produzia o efeito de um beliscão beligerante. pra amenizar a dor, a gente passava geleia real no lugar da picada. várias pessoas morriam nesse processo, mas outras sobreviviam. as que sobreviviam, recebiam a implantação de um CHIP imantado sob a pele e, finalmente, elas podiam ver os cabos de metal laranja que conectavam elas ao céu e à terra, conectavam com as partes complementares de cada ser vivo desse planeta
eu acordei com dor de cabeça, mas com uma sensação muito boa de que era só uma questão de tempo
de sexta (03/04) pra sábado (04/04)
sonhei que a gente mesmo dormindo tava acordado e todos os tempos se misturavam e não existia mais nenhuma diferença entre o real e o virtual éramos uma coisa só circulando aí tinha uma equipe de mulheres curandeiras da idade média que aparecia e dizia em linguagem macuxi eu acho entoando um canto que parecia o tukui dizia pra gente que pra combater o vírus a gente tinha que fazer em casa uma composteira dessas simples de fazer porque foi demonstrado em estudos científicos bem posteriores que o contato com uma bactéria presente no húmus dessas composteiras funcionava como antidepressivo que diminuía a dor do passado das pessoas e isso ajudava a combater o vírus porque ajudava a processar o karma da humanidade era um momento de muita alegria pra todo mundo quando elas diziam isso principalmente pras minhocas das composteiras e a gente via pela televisão via satélite até no celular que cada bairro começou a fazer a sua composteira comunitária todo mundo de máscara vestido de astronauta nas praças que tinham virado verdadeiros espaços coletivos de cultivo urbano de orgânicos e a ideia geral era começar a expandir das casas das pessoas que já tavam engajadas nesse processo de compostagem há mais tempo pras outras que ainda não tinham começado aí as prefeituras em conjunto com as empresas de telefonia privada pegaram todos aqueles orelhões antigos aqueles em formato de feijão e reciclaram eles transformando eles em cápsulas próprias pro cultivo regenerativo do planeta como se fossem carrinhos de mão portáteis que ficavam flutuando como um altar brilhante isso facilitou em muito a comunicação entre os humanos e as plantas porque cada planta plantada nessa cápsulas nos enviava um vocábulo novo tipo como se fosse um google translate das plantas saca? mas só pelo pensamento aí a gente aprendia essa linguagem assim pela troca de pensamento e isso foi muito fundamental no processo de aprimorar nosso contato com elas que já tava se dando de maneira direta e bastante energética porque as plantas falavam a linguagem sagrada da espiral porque isso ajudava a filtrar o planeta
de quarta (01/04) pra quinta (02/04)
este sonho já nasceu marcado –
sonhei que nós nos comunicávamos pelo bico de peito
há muitos anos nós falamos a língua do bico de peito
bico de peito é um pássaro viajeiro mas também uma caneta bic azul
às vezes pode dar choque às vezes pode mudar de penas
às vezes mandava poucos sinais
eu escutava seus indícios de longe como se fossem assobios telepáticos
em forma de chilros neuronais tinnitus nos meus ouvidos
mas ontem à noite foi diferente
não precisávamos mais usar de tantos subterfúgios
pela primeira vez eu encontrei você num bar
ninguém tava bebendo nada mas marcamos lá
o bar era um cérebro a céu aberto no stylo anarco-barroquismus em algum buraco do benfica
era noite fechada mas tinha muita luz adentro
como podia fazer noite em pleno exercício de luz do dia?
você tava todo de preto e você era o homem mais bonito do bar
você sabia disso na sua condição de vampyrus compassivus vampyrus sabem de tudo
você e meu amigo max maximiliano fernández outro vampyrus compassivus
vocês podiam facilmente ser confundidos com a mesma pessoa
ainda mais de óculos escuros
você era totalmente diferente do que eu imaginava você era espirituoso
mas o único problema se é que podemos falar assim
é que você me trazia de volta o desejo
o desejo por tudo aquilo de que tô tentando me livrar há anos
não é que eu tenha tido medo de você mas você sabe as feridas ainda doem
o soporífero que você me deu no bar me trazia à consciência tudo o que eu tô trabalhando
o que preciso transformar
o que você queria de mim com seu bico de peito aberto? não faço a menor ideia
não tenho como saber se pelo menos me deixassem ler seus pensamentos
mas você tinha uma placa de estanho na cabeça um escudo pra se proteger
e um celular na mão e toda hora você se afastava da mesa da cabeceira da mesa
e ia falar no celular
em algum momento apareceu minha vizinha e ela se sentou no seu lugar
eu começava a falar de você pra ela e ela percebia como eu gostava de você
como eu tava gostando de você daí ela ficava levantando a blusa
mostrando o peito dela na sua direção
você nem via porque tava sempre falando no celular
o peito dela não era como um peito de mulher mas ela disfarçava
tinha muito glitter dourado em cima eu ficava com ódio
mas não demonstrava só dizia pra mim mesma
tem muita coisa que reluz é fake
você voltava do celular e nem estranhava que tivesse alguém sentado no seu lugar
só me dizia no canto d’ouvido assim
baixinho xapiri gita xangô
com essas três palavras três palavras mágicas
a gente podia desaparecer
mas a minha vizinha ela só escutava guita
talvez estivesse mesmo perdida
vai saber
de terça (31/03) pra quarta (01/04)
sonhei que minha mãe e minha irmã apareciam na minha casa do nada.
elas vinham aqui me visitar. minha mãe entrava no meu quarto e minha irmã ficava na sala.
eu tentava expulsar as duas gritando, falando do vírus…
o que vocês tão fazendo aqui sem máscaras?, vocês querem morrer?, vocês tão doidas?
depois que eu falava isso, minha mãe meio que caía na minha cama, como se tivesse desmaiado.
minha irmã veio correndo pro quarto e a gente começou a abanar a mamãe com uns leques que apareceram nas nossas mãos. pouco a pouco, a mamãe começava a recobrar os sentidos e a falar, mas,
quando ela falava, ela levantava o braço esquerdo. ela é canhota. vai ver que isso tem alguma relação.
quando ela fazia isso, deixava transparecer um tumor que ela tinha no peito, do lado esquerdo.
esse tumor era seu próprio coração.
de domingo (29/03) pra segunda (30/03)
sonhei com o myzael e mandei um áudio no zap pra ele, contando como era o sonho, vou transcrever.
“valha, myzael, eu tive um sonho contigo, cara. era assim, meio estranho, tipo… sabe na época do espinosa, que mandava… que ele fazia uns panfletos e… e colava nas paredes? não tinha essa coisa que o povo fazia, nera? [bocejo] aí tu, era uma pa, era um, era uma coisa assim, sobre os malefícios, os males. deve ser por causa disso aí né, que tu mandou, esse negócio desse lucas [na verdade ele mandou uma passagem de mateus]… aí é um panfleto, anônimo, tu fazia… e… não sei se era tu mesmo que fazia, mas chegava através de ti [bocejo]… aí tinha o estilo, era um poeta mexicano que eu gosto muito, que era o… luis felipe fabre, que ele tem um livro sobre zombies e ele também tem um poema maravilhoso sobre a… a sor juana, era isso. eu tô mandando esse áudio aqui só pra gravar, porque a gente tá gravando os sonhos… é, guardar, que tá guardando os sonhos, a gente tá compartilhando os sonhos que a gente tá tendo, tem um grupo de pessoas. um bejo, myzael.”
depois disso, fui ver o que o luis felipe fabre tava fazendo e o último livro dele, a sua primeira novela, publicado em 2019, é em torno do místico san juan de la cruz: declaración de las canciones oscuras.
de sexta (27/03) pra sábado (28/03)
sonhei com minha família e alguém dava um grito quando meu sobrinho aparecia na igreja.
daí comecei a escrever o sonho, mas transformei ele em outra coisa, completamente diferente.
durante os festejos de anna ac peranna
no limbo
cornélia africana queria fazer uma vídeo-
-conferência com todos os membros
de sua família
porque ela tava com maus pres-
sentimentos
com relação ao futuro
de um de seus filhos
o pequeno caio
na época
com apenas 7 anos de idade
só que ela não sabia fazer isso direito
vídeo-conferência
então ela resolveu chamar
um de seus fiéis conselheiros
pra ajudá-la e veio plínio, o velho
de outro submundo vizinho
mas ele também não sabia fazer
vídeo-conferência
pra resolver o problema
eu me dispus a ajudar e ungido
do espírito de plínio, o moço
fiz a chamada coletiva
logo depois do almoço
na hora da siesta
quando caio finalmente
atendeu os chamados de sua mãe
aflita fui eu quem deu um grito
meio involuntário
completamente perturbado
com o que vi
porque nos seus olhos
de criança eu vi o futuro
do meu tio-avô morto
pela fúria avassaladora
do vesúvio
– reconhecida pela ciência
como erupção pliniana
e apesar das semelhanças
não é uma ereção, explicava
caio, já adulto, em outro
momento de sua vida –
depois disso caio
nunca mais parou de cair
bye-bye vídeo-conferência
o sinal ficou bastante
instável
alguma zona de sombra
talvez interferência
meu grito de assombro
reverberando
num raio de 1 km
diante da morte
de quinta (26/03) pra sexta (27/03)
sonhei com a força tupínika
a mudança dela
eu ia ajudar –
era uma casa de 2 andares
no meio da floresta
só que eu meio que esquecia
uma luz acesa
no segundo andar
na parte da cabeça
e eu dizia pra ela
força tupínika,
esqueci uma luz de cima
acesa
quando eu me acordo
eu penso sobre a luz acesa
e é como a luz da igreja
que tá sempre acesa
mas, no meio da floresta,
que luz seria essa?
deus? natureza?
p.s. tô entendendo meus sonhos
como narrativas de alguém que relata,
através deles, questões ligadas
à espiritualidade
quer dizer, eles podem ser lidos
numa chave espiritual
como uma espécie de percurso
eu acho, uma aprendizagem
de quarta (25/03) pra quinta (26/03)
esse sonho começa na casa da mari sendo toda renovada com a pintura das paredes (isso pode ser, sim, uma alusão ao ano passado, porque, de fato, ano passado tinha isso, ela fez isso, mas a cor das paredes roxas também podem ter a ver agora com a renovação da quaresma, roxo é a cor da quaresma). eu tava no centro de um cômodo vazio (tipo, onde é o gabinete) e verificávamos que o apto dela era todo vazado e podia ser visto e penetrado de outros cômodos com muita facilidade… então, a gente se perguntava, como vamos nos proteger do vírus, se tá tudo aberto? vamos pra cozinha, mas na cozinha tinha algum conflito mal-resolvido entre a gente e nisso aparece a geórgia, uma amiga minha da época da escola que não vejo há muito tempo, dizendo que a casa dela (da mari) tá linda… eu não sei por que, mas eu já tô em outra parte da cidade… tipo, muito longe, numa parte bem mais pobre, fomos parar na sede do MST. eu digo fomos porque a flávia e a lili também tão ali. o que nós viemos fazer aqui? eu me pergunto, mas não sei se tem a ver com um aborto, as meninas vão embora num uber, tipo um jeep gurgel, igual ao do tio maurício, só que só cabem duas pessoas atrás (elas mesmas) e eu fico pra trás, fico sozinha nessa parte da cidade, e não sei muito o que fazer. então, eu decido ir esperar um ônibus, que não chega nunca, mas eu fico olhando praquela parte da cidade e ela é feita de muitas partes, uns recortes geométricos muito estranhos, tipo quando eu ficava olhando pra umas partes de lisboa, que tinha várias perspectivas possíveis… numa delas, tem um cara colocando um outdoor, mas não um outdoor como dos tempos de hoje. ele tava lá no alto, em cima de uma escada muito alta, batendo numa rocha com instrumentos de ferro, escrevendo dentro de uns quadrados Q U A R E S M A como se tivesse fazendo um decalque na pedra, escrevendo em baixo-relevo, lapidando a pedra. eu vejo aquilo tudo e vou numa banca de jornal e compro um cigarro por unidade. eu tenho muita vontade de fumar, mas acabo não fumando, que bom. daí chega um cara muito estranho, tipo um namorado que a minha irmã já teve e ele começa com uma conversa muito mole pra cima de mim. no meu sonho, ele é diretor de cinema e o nome do filme dele era “101 pessoas numa sala fechada”. daí ele começa a dar em cima de mim e a querer me agarrar e ele tenta me beijar à força e coloca a mão na minha buceta, me apertando e me machucando (tipo o gesto que o cara do filme que eu vi, nocturama, fez num manequim). eu começo a dar uns murros nele, muitos murros, e eu percebo que têm duas formas muito boas de dar murro em alguém e eu bato de um jeito que sai sangue, bastante sangue da cara dele. depois de ter deixado ele lá no chão, volto no MST e procuro a aspásia.
a aspásia é massa, além de ela dar aula de kung fu, ela tem um nome que nos reconcilia com o mundo, que faz as pazes, aspásia mariana.
de terça (24/03) pra quarta (25/03) – dia da anunciação, dia de são dimas, o bom ladrão
uma das coisas que eu mais gosto dos sonhos é a forma de realidade que acompanha eles, que vem acoplada neles, junto com eles. sonhei que voava pra lisboa e o melhor, sem precisar pagar pela passagem. e, de quebra, eu escapava de todos os procedimentos de segurança sanitária que tão sendo feitos agora, contra o vírus nos aeroportos. acordei bem cedo, pra ver a missa solitária do papa, eu gosto desse papa, papa francisco, papa comunista… daí adormeci novamente e sonhei. já acordava em lisboa, com um skate na mão. eu tinha um skate e, mesmo com muito medo de andar de skate, eu tava descendo ladeira abaixo. eu tava com muito medo de descer, mas no sonho eu dizia pra mim mesma: érica, você morou aqui por vários anos e nunca fez isso, aproveite! então, eu descia umas três vezes e começava a ter boas sensações no meu corpo, especialmente na minha barriga, enquanto eu tava deslizando. acho que lisboa não é uma cidade boa pra se andar de skate, mas quem se importa? era só um sonho e era muito perto do jardim da estrela. um lugar mágico. daí, de repente, eu acordava de novo e via o papa rezando pela humanidade, papagayando por gaya. era umas 8h da manhã no brasil e meio-dia em roma. adeus, skate! foi muito bom ter estado com você!
demorei o dia inteiro pra escrever esse sonho, porque tava muito concentrada fazendo outras coisas… daí à noite, recebi uma notícia muito boa, vinda de lisboa: ara nasceu! seja bem-vinda a este mundo, ara, nós te amamos muito! seara, ceará… ara veio ariana, cheia de força pra plantar muita coisa por aqui. parabéns yuri e cecília, amor demais, vida-furacão. acho que meu processo de aprendizagem espiritual tem muito a ver com esportes, mas é um pouco triste que eu tô praticando eles sozinha e somente nos meus sonhos.
de segunda (23/03) pra terça (24/03)
sim, eu pensava que ia ser capaz de me lembrar
deste sonho, tinha a ver com vitórias régias
mas eu não lembrei quando acordei, só lembrei depois,
durante o dia
acho que podia ser uma re-interpretação
do que aconteceu durante o dia
e talvez pudesse abrir pra outras formas de leitura
pro evento “derrubaram um abajur no quarto ao lado”
ou “o que faz um poeta numa quarentena
quando se encontra com outros poetas numa live”
sonhei que eu ficava treinando saltos à distância
sobre vitórias régias, andando sobre elas
de uma margem do rio à outra
talvez isso tenha alguma relação com o aprendizado
budista (pensando na imagens clássicas de buda
e a flor de lótus) porque vitória régia também tem flor
ai minha daisy, érica!
mas o sonho tinha algo de uma aprendizagem
muito física como o salto, o corpo, a folha, o rio
atravessando pra outra margem do rio
o lado de lá
que era muito longe
eu deveria ter escrito esse sonho em inglês,
pra ver se tinha alguma outra cintilação que aparecia
de sexta (20/03) pra sábado (21/03)
sonhei que falava línguas que não sabia falar, como o árabe, por exemplo,
e ficava fazendo poemas, a partir de pedaços de fala que eu improvisava,
que eu achava que era árabe. eu ficava falando com o google translate, que traduzia
simultaneamente a minha glossolalia pro inglês, pro francês e pro português.
quando acordei, fiz exatamente como no sonho e recebi estes poemas, espécies de
profecias-profanas do oráculo do google, traduzidos diretamente do reino de hypnos.
eu não tenho nada a ver com isso, sou apenas uma mera esponja.
1.
sobre a holanda
vá pra casa
um sonho
olá carreiras
adeus
tio hannah
o bairro deles
olá olá olá
eles são eles
eles são eles
2.
sonhos do levante
preâmbulo
aurora
amanhecer
sopro de solda
murmúrio
grávida
o apoio do orador
o utente
grávida
completamente cheia
como a lua cheia
um sonho
paciência
pubescência
indulgência
o sonho